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postado em: 19/10/2011
A Cidade de Outrora
Fernando de AlmeidaSilva
Editor Associado
www.iasdemfoco.net
[email protected]
No começo de abril de 2011 fiz uma viagem à minha cidade natal, Itapetinga (BA), para rever parentes e amigos que deixei, quando estive lá pela última vez. Tinha pressa de vê-los, depois de anos morando distante e, eles, ainda na mesma cidade. Marcos, meu filho, me acompanhava. Nossa viagem começou bem cedo, na cidade de João Neiva (ES), onde o Marcos mora, distante 84 quilômetros de Vitória, capital do Estado, onde resido.
A estrada, principalmente o trecho entre Itabuna e Vitória da Conquista, é muito bonita, larga e bem feita. Um “tapete” de asfalto de muitos quilômetros a céu aberto, diferente da pista estreita e perigosa que existia antigamente. Não imaginava encontrar na região rodovia tão boa. No meio do caminho fica a cidade de Itapetinga, com 69 mil habitantes, nosso destino final.
Era noite quando avistamos, no céu, o primeiro clarão das luzes da cidade bailando um pisca-pisca de beleza e encanto de encher os olhos. A beleza noturna que eu via, a dez quilômetros de distância, deixou-me com o coração tomado pela alegria. Eu estava voltando às minhas origens novamente, 46 anos depois que parti pela primeira vez, aos 18 anos de idade
Nada substitui a alegria de chegar, depois de anos de ausência. A alegria, assim como a tristeza, assemelha-se à luz da manhã que chega com o dia e vai embora com a noite, como se o tempo não tivesse passado e quem chegou não tivesse partido.
O carro avançava pela estrada asfaltada, como se voasse sobre um tapete macio, tal qual o nadador sobre as águas silenciosas do rio, vencendo as corredeiras que surgem. Singrava, cortando o vento, vencendo as distâncias, deixando para trás cidades, vilas e povoados, subidas e descidas, até chegar à última lombada, de onde avistamos as primeiras luzes da cidade, à semelhança de um cartão postal, suspenso no meio da noite.
À medida que me aproximava, a ansiedade tomava conta do meu coração, na pressa de ver como as ruas, as praças, as casas e o comércio estavam atualmente. Sabia, no entanto, que a vida da antiga cidade tinha sido sufocada pela modernidade, como a noite sufoca o dia. A vida diária da cidade antiga, que era parte da minha vida de menino, estava sepultada nos dias dos anos do passado. E a vida da cidade atual, pouco lembrava a de antigamente.
A cidade de outrora era simples e quieta. E seus encantos enchiam a alma de êxtase e o coração de alegria. Mas, isso tudo era passado. O êxtase e a alegria dos velhos tempos ficaram para trás perdidos nas horas da alma das noites sem nomes e ruas com medo de escuridão, que o delírio dos sonhos não sabe explicar. Então recordaria, apenas, a beleza interiorana da cidade simples do passado, que a memória do tempo guardou.
O tempo de outrora nunca mais volta. O presente une a vida às recordações do passado, como se elas fossem o elo partido da vida que queremos juntar novamente, enquanto o Sol derrama lágrimas de luz sobre as montanhas. E o coração afaga os apelos da religião na genuflexão da prece e permite sua aceitação, pelos meandros da fé, enquanto o dia suspira pelas montanhas, à procura das encostas para cochilar.
E, então, chegamos às portas da cidade. Meu coração vibrava de alegria, como o paradoxo das recordações, à procura de explicações que eu não podia entender e, muito menos, explicar.
O belo parque, à entrada, abraçava o lago quieto e vigiava os passos de quem entrava na cidade por aquele caminho, seja de dia, seja de noite. E dormia sob o luar, o olhar intrigante das estrelas, sem se importar com a preguiça pontual da noite e o eterno silêncio da madrugada. Era o orgulho da cidade renovada. Mas, no passado aquele mesmo lago era apenas uma solitária lagoa envolta pelo mato, distante da alma encantadora das ruas. E onde eu e meus amigos jogamos futebol muitas vezes, em um improvisado campinho de areia solta, que mais parecia uma mancha de terra, esquecida no meio da solidão. Corríamos atrás de uma primitiva bola de bexiga de porco. E disputávamos com bois, pássaros e animais, a água escura para beber, nos intervalos de cada jogo.
Olhando para o lago, as lembranças de outros tempos levaram-me à noite em que uma tragédia aconteceu ali. Três pessoas morreram afogadas, quando o motorista do caminhão, que ia de Itapetinga para Macaraní, pela estrada de chão que passava ao lado da lagoa, perdeu o controle e o caminhão tombou dentro dela, cujas águas eram cobertas de baronesas e infestadas de sanguessugas sedentas de sangue.
Naquele tempo, eu achava que a lagoa era muito distante da cidade. Mas agora, fazia parte dela. Com o passar dos anos a cidade cresceu, abraçou a lagoa, avançou para os lados, chegou às montanhas e seguiu pelos campos.
Lentamente nos aproximamos do coração da cidade. Eu olhava com espanto as transformações que o homem e o tempo fizeram. Onde, havia uma casinha simples de alvenaria, agora tinha uma casa bonita de concreto armado. Onde existia uma casa grande, agora tinha um prédio de dois, três e até de quatro andares. Onde era mato, havia bairros e ruas com apelidos esquisitos ou impublicáveis. E o edifício de oito andares, fincado na praça principal, único daquele tempo, agora tinha um rival, no bairroColina, embelezando a velha cidade de outrora.
À medida que eu passava, olhava com atenção cada casa, esquina e lugar, com os olhos de saudade de outros tempos. Algumas coisas permaneceram do mesmo jeito de antigamente, de quando deixei a cidade pela primeira vez. Olhava as pessoas, as calçadas, os carros, as ruas (asfaltadas), até chegar diante da casa da minha irmã Ione, como o navio que chega ao porto de seu destino, depois de anos distante no mar, e cujo capitão sempre sonha voltar. E sempre sonha chegar. E sempre volta. E sempre chega.
A cidade que deixei tinha mudado. Em seu lugar havia outra, de cara nova e sorriso aberto à gastança, à vida noturna, ao vírus do vício e aos divertimentos, com a violência hospedada em cada canto e lugar.
Da janela das minhas recordações olhava as ruas, as praças, os jardins, as montanhas, o casario, tudo em silêncio de compaixão e espera... E submissão à luz da razão, sem o romantismo de outros tempos. E, então, sentei-me no vão da porta das velhas lembranças, que mais uma vez me fizeram voltar. E fiquei a ver o rosto do tempo como era antes. E a ouvir a voz do vento como antigamente. E a contemplar a aurora da minha juventude, na cidade que me viu nascer. Foi como ver o rio correndo, dias e noites sem parar, até chegar e abraçar a foz e se enamorar da espuma branca que baila sobre as ondas que morrem na praia da orla extensa do mar.
Ao amanhecer, sentei à porta do templo da minha vida, para ver a cidade que a luz do dia me deixava ver. A cidade de outrora não existia mais. Tinha morrido para muitas coisas. A quietude, a meiguice, o romantismo, morreram. O silêncio também morreu em alguns bairros, nas praças, nas ruas, nas casas... E o barulho tomou conta da vida, sem se importar com as lembranças do passado. O tempo do sorriso das moças, que ao cair da noite embelezava as praças Dairy Valley e Augusto de Carvalho, ficou no passado. O galanteio dos moços deixou de existir. A suavidade da noite desapareceu. Da beleza de outros tempos restaram, apenas, as lembranças perdidas na escuridão da memória, que eu procurava encontrar, para renascer das cinzas do meu passado, a fim de lembrar como era o mundo daquele mundo que passou, quando a cidade dormia silêncio e a noite respirava paz.
Então, na angústia da minha alma, indaguei no meu coração:
Onde está a cidade, cujo silêncio envolvia a noite, se acomodava em meus braços e me fazia sonhar? Onde foram parar os sussurros das primaveras, com o perfume suave das flores, que não os ouço e nem sinto mais? Onde está o tremular sofrido do verão, com sua miragem de calor e medo, que fazia “tremer” a superfície da terra, que não consigo esquecer? Onde estão os sibilos dos ventos do inverno, que marcaram as estações dos meus dias de menino, que os ventos não trazem mais? Em que cantos se esconderam as sombras da alma dos outonos, cuja música sublime eu ouvia pelos campos e caminhos distantes, nos vales e nas montanhas, ao suspirar dos últimos instantes de vida do entardecer?
E de novo indaguei, no silêncio do meu coração:
Como esquecer a beleza das estações de outrora, que marcaram os anos da minha juventude? Como esquecer os acordes das canções inocentes do passado que debulhavam meu coração em afagos de ternura, mas que se perderam na melodia sem graça dos novos tempos? Fiquei sem respostas. Eu estava no meio da multidão e do corre-corre febril dos tempos modernos, como se fosse um estranho em minha própria cidade, tateando o tempo à memória das ruas, à procura de rostos para encontrar o rosto do tempo de outros tempos, que a distância dos anos não me deixava vê.
E, então, conclui que as lembranças daquela época e da viagem que fiz com meu filho, Marcos ficarão para sempre gravadas na memória do tempo das estações dos tempos que se foram, como as súplicas da alma nas páginas sublimes da minha vida. E que as carícias dos segredos ficarão, mas sublimadas na doçura do encantamento do beijo, à procura de rostos para encantar. Ficarão à espera da aurora de cada dia e da ternura de cada noite, para eternizar a beleza da cidade que existiu, emoldurada nos momentos inesquecíveis do passado. Ficarão para lembrar os tempos em que o sereno caía e o silêncio soluçava promessas de não morrer... E o vaga-lume riscava restos de escuridão na solidão da memória, para iluminar as lembranças que ficaram da cidade de outrora.