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postado em: 21/12/2012
“COLORIDO”
Fernando de Almeida Silva
Editor Associado
www.iasdemfoco.net
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“Colorido” era uma figura simples e divertida. Um verdadeiro “palhaço”, na definição hilária do imaginário coletivo da faculdade da vida. Um sonhador. Em uma definição mais simplória, um folgado. Folclórico, toda vez que falava sobre suas conquistas, provocava gargalhadas nos aproveitadores da desgraça alheia. E onde houvesse um grupo de pessoas, lá estava ele, contando suas aventuras, deixando no ar uma interrogação insatisfeita de dúvida ou mentira, fazendo a alegria de uns e o deboche de outros. Mas, ele não se importava com isso. Brincalhão (e debochado também) chamava a atenção por onde passava e, sem perceber, profanava a quietude da então pequena cidade de Itapetinga (BA), nos idos da década de 1960.
“Colorido” usava chinelos de dedo, de borracha, que, naquele tempo, há 50 anos, mesmo em uma pequena cidade do interior, eram considerados “de pobre”. Só usava sapatos em ocasiões especiais, quando tinha festas no clube da Associação Cultural Itatinguense (atual Itapetinguense) – ACI. Nesse dia, ele tirava do guarda roupa seu único terno, cinza, velho e surrado, que ficava apertado no corpo dele, para entrar de mansinho e de penetra (sem pagar). E lá se divertia a noite toda, comendo e bebendo, até o dia amanhecer.
A partir da fundação do Clube da ACI, em 1954, orquestras e cantores famosos da época passaram por lá: as orquestras Cassino de Sevilha, de Tonéis (da Venezuela) e de Severino Araújo; os cantores Sílvio Caldas, Alcides Gerardi, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Colé e Nelson Gonçalves; as cantoras Virgínia Lane, Aída, Paula e Conchita Mascarenhas; e o Trio Irakitan.
“Colorido” vivia nas alturas do seu Alter ego confortador, seu outro Eu inconsciente, acreditando ser importante e querido, o que, de certo modo e, quanto a ser “querido”, até certo ponto era verdade. Absorto nos sonhos e na vertente do labirinto de suas alucinações pueris, sem limites de piedade, tropeçava na ilusão da quimera.
Um dia, no auge do delírio, ele apareceu com uma coleção de 16 carteiras de identidade acomodadas em uma tira de plástico transparente, conseguidas não se sabe como (e onde). Desfilou com elas pelas ruas, em triunfo, até o Bar e Sorveteria Maringá, onde provocou um festival de curiosidade e piadas. E o povo ria dele. E ele ria com o povo. E ia à glória de sua insensatez, sem se dar conta do ridículo a que se expunha.
O palco de seu drama anunciado eram as ruas, onde exaltava sua fantasia maior: as bravatas de vitórias que ninguém via. Começava no Armazém Central, do José Pithon Barreto, na esquina oposta à casa de Novato Brito, e ia até a Casa Dedé, de Dedé Moreira, o Bazar Rucas, dos irmãos Jorge e João Saliba, o Bazar Fascinação, de José Mendonça Luna, no térreo do prédio da Câmara Municipal, as calçadas do Banco da Bahia e do Banco Econômico, a quadra de esportes da ACI, o hall de entrada do Cine Teatro Fênix e, também, o Bar e Sorveteria Maringá, de Vadinho Penteado, no centro da praça principal, a Augusto de Carvalho, ponto de encontro de jovens e adultos.
Nessa mesma época surgiu na cidade outra figura folclórica: “Ló”, com uma câmera fotográfica na mão, fotografando todo mundo, para chamar a atenção sobre si. Mas, o “Colorido” era mais divertido.
Naquele tempo, não era qualquer um que podia ter uma câmera fotográfica (hoje tenho dezenas em minha coleção). E ele tinha uma, de fabricação alemã (um luxo!), de fole retrátil. Para fotografar, soltava uma trava, literalmente abria a câmera, puxava a objetiva, fazia o enquadramento e apertava o obturador. Depois, fechava o fole, apertava a trava, colocava sua preciosidade no bolso da calça e saía triunfante, sob os olhares de admiração dos “fotografados”. Um mimo, para quem conhecia, apenas (quando conhecia), os “caixotes” (hoje peças de museu) da Kodak, que faziam fotografias 4 x 6. Quanto às fotografias que “Ló” fazia ninguém nunca viu, sequer, uma delas. E, se tinha filme na câmera, é uma dúvida que ainda persiste.
Aos domingos, quando tinha jogo no velho campo de futebol do Ipiranga Esporte Clube, que depois deu lugar ao Ginásio Industrial e outras edificações, lá estava o “Colorido”, para deleite dos aproveitadores da desgraça alheia. Quanto mais gente no campo, para ver os gols de Vadeboba (famoso por seu chute forte – fui vítima dele uma vez) e Brito (jogava no Vasco) e as cambalhotas do baixinho Biguá quando fazia um gol, mais ele brincava e sorria, sempre exibindo sua coleção de carteiras de identidade, como se elas fossem o estandarte de suas pífias vitórias, que ele achava grandes e notáveis. E sorria feliz, de suas proezas. Ainda me lembro do timbre de sua voz.
“Colorido” e ”Ló” se sentiam importantes. Por onde passava, sempre sorrindo, “Colorido” deixava um rastro de deboche e compaixão; e “Ló”, de curiosidade e indiferença. Não me lembro de tê-los visto trabalhando, de verdade, em algum lugar.
Então, um dia, em dias e datas diferentes, partimos. “Colorido” e eu fomos viver nossas vidas em outro lugar. Isso foi no começo de 1965. Nunca mais os vi, nem o “Colorido” e nem o “Ló”.
Entre os anos 1983 e 1986, como pastor distrital, morei na cidade de Linhares, Norte do Espírito Santo, onde havia um forte comerciante de material esportivo, que não conheci.
Por volta do ano 2005, quando eu já morava em Vitória, o assassinato de um comerciante, na cidade de Linhares, repercutiu em todo o Estado, devido à maneira brutal como fora perpetrado. Li a reportagem e lamentei a morte trágica de JOALDETE LEMOS DE SOUZA, conhecido, apenas, como “Lemos”.
Anos depois, conversando com o Vadinho, do antigo Bar e Sorveteria Maringá e proprietário do restaurante Recanto Baiano, na cidade de Vila Velha (ES), eu fui tomado de uma surpresa desagradável. Recordando os velhos tempos, passados 46 anos, soube que Joaldete Lemos de Souza, o “Lemos”, era o mesmo “Colorido” que, no passado, desfilava pelas ruas de Itapetinga e fazia a alegria dos aproveitadores da desgraça alheia.
Vadinho me contou que quando “Colorido” morreu, ele era um bem sucedido comerciante, dono de três lojas de material esportivo, e não ostentava mais a famosa coleção de carteiras de identidade, como fazia antes e sendo alvo de deboche. Ele venceu por acreditar em seus sonhos e lutar por eles.
Vasculhando na memória imagens do passado sobre o comportamento dele, concluí que viver e sonhar, como ele viveu e sonhou a realidade da vida, é transportar as quimeras da vida vivida antes, para o sucesso pleno da vida depois. E que o sucesso, mesmo em lógicas desiguais de tempo e distância, só é possível quando se luta e acredita nele. E “Colorido/Lemos” sonhou e acreditou em seus sonhos. E venceu com as armas de que dispunha para lutar: sua inocência de maldade e persistência em tudo o que fazia, mesmo sabendo que, às suas custas, os aproveitadores da desgraça alheia riam e debochavam dele.
Então, ainda lembrando-me dele, que vivia perdido nas ruas de sua imaginação e, conforme a crença que ele tinha, à época que o conheci, eu pensei: “‘Colorido’ morreu e agora está mostrando suas carteiras de identidade no Céu, para ver se pode entrar, brincar e sorrir com Deus”.
E fui embora outra vez.