Nicolau I, dito o Grande (858-867)

A Sé de Roma já é um Estado absolutista e seu bispo já é vigário de Cristo

 

 

 

Depois da papisa Joana, veio Benedito III (855-858), um santo homem que de jeito nenhum queria ser bispo de Roma com medo de perder sua alma, mas foi obrigado pelo povo e pelos senhores da cidade depois de muitas lutas armadas, conduzidas pelo anti-papa Anastásio.

 

A única coisa que interessa, do ponto de vista do poder, é que no , ano de 856 Etelvulfo, rei da Inglaterra, veio em peregrinação até  Roma para colocar seu reino sob a proteção de Benedito III, pois considerava a Sé de Roma a maior potência espiritual e política da Europa; a única que tratava diretamente com os reis do Ocidente.

 

Quando voltou à Inglaterra, ordenou que a décima parte de todas as terras da Inglaterra se tornassem propriedade da Santa Sé de Roma, de forma que os impostos nelas recolhidos fossem enviados diretamente para lá, juntamente com o "óbolo de São Pedro".

 

E, para completar o fato, o rei Etelvulfo deixou no seu testamento uma renda de 300 marcos de ouro para o bispo de Roma. Como se vê, pelo menos do ponto de vista econômico havia-se feito  grandes progressos.

 

Benedito III morreu em 10 de março de 858 e lhe sucedeu Nicolau I, dito o Grande: grande, segundo a ideologia do poder, característica dos bispos de Roma.

 

Num artigo passado (n° 636), falei do "Líber Pontificalis" e das "Decretais do Pseudo-Isidoro". Pois bem, tão logo Nicolau I foi empossado, apoderou-se dessas "Decretais" servindo-se delas como documentos autênticos para a sua ação política.

Já escrevi, naquele artigo, que certo número de bispos dos países francos situados à margem esquerda do rio Reno fabricaram uma centena de falsos decretos, atribuindo-os a antigos concílios, onde afirmavam o "grande poder papal" em relação às demais igrejas.

 

Esses documentos falsos foram forjados para garantir àqueles bispos uma total independência frente aos metropolitas que tinham cargos eclesiásticos maiores; era como se quisessem dizer: nós só dependemos da Santa Sé de Roma; a única Sé que tem direitos divinos sobre todas as igrejas. O motivo era que estando a Sé de Roma a dois meses de cavalo... muito raramente se metia nas falcatruas deles...

 

Mas Nicolau I tomou o falso por verdadeiro, já que lhe proporcionava poder sobre todas as igrejas, uma vez que essas Decretais lhe davam a plenitude da autoridade eclesiástica, implicando, isso, na teoria de que os bispos eram apenas auxiliares do bispo de Roma, considerado bispo da Igreja universal e portanto o único que podia consolidar todos os decretos de todos os concílios e sínodos.

 

Fato este que, por si só, não implica somente na jurisdição universal, mas também na infalibilidade quanto à matéria de fé católica; e isto, por sua vez, implica no fato de que a Sé de Roma permanecia isenta de erros até o fim dos séculos.

 

Assim pensava Nicolau I e assim pensam até hoje os autores dos manuais de Teologia católica. Deste modo entende-se por que com Nicolau I surge um novo Direito Eclesiástico.

 

Partindo de premissas então aceitas pelos bispos europeus de que o Filho de Deus havia fundado uma Igreja nomeando Pedro seu primeiro chefe, os bispos de Roma herdaram dele (Pedro) diretamente a sua autoridade.

 

A partir dessas premissas, Nicolau I dizia que ele - e seus sucessores - era o próprio representante de Deus na Terra. Conseqüentemente, ele gozava de total autoridade sobre todos os cristãos do Oriente e do Ocidente; não só, mas caso os reis sejam cristãos, eles também cairiam automaticamente debaixo de sua autoridade.

 

Daí, primeiro, seu absolutismo em matéria de fé e de costumes (moral); segundo, a necessidade de converter ao catolicismo aqueles poucos reis que ainda não eram batizados.

 

Mas aconteceu que certo número de bispos franceses não aceitou a interpretação de Nicolau I e se rebelou. Ele, porém, lhes respondeu com uma mentira, isto é, que a Igreja de Roma possuía nos seus arquivos, fazia muitos séculos, esses decretos que deviam ser venerados como antigos documentos... Aliás, em força desses tão antigos decretos qualquer escrito papal tinha já, por si só, força de lei para todas as Igrejas cristãs.

 

E Nicolau I passou logo das palavras aos fatos, pois num sínodo realizado em Roma no ano de 863, ele excomungou todos aqueles que não fizessem caso das leis promulgadas pelo bispo de Roma.

Toda essa história das falsificações do Pseudo-Isidoro e da política mentirosa de Nicolau I, o leitor pode encontrá-la em "Sacrorum Conc. Nova et Ampl. Collectio" (XV, 202, 688, 694, 695) de Gian Domênico Mansi, teólogo italiano e arcebis¬po de Lucca (1632-1769).

 

O motivo pelo qual Nicolau I foi chamado de "grande" pelos historiadores católicos-romanos, aparece logo após a sua consagração: exigiu que o imperador Luis fosse a pé ao seu encontro e segurasse as rédeas de seu cavalo, conduzindo-o da basílica de São Pedro ao palácio do Latrão e antes de despedir-se, o imperador teve que curvar-se e beijar as sandálias de Nicolau I.

 

Surgiu nessa época um religioso de nome Bertram, do mosteiro de Corbie, que afirmava que na eucaristia os fiéis recebiam o corpo de Cristo só espiritualmente e não materialmente (escrevendo um tratado sobre o assunto a pedido do imperador Carlos o Calvo) para evitar que o corpo de Cristo ficasse sujeito às leis da digestão ("estercorismo", como se dizia na épo¬ca). Nicolau I resolveu o problema de autoridade e ponto final!

 

Mas apesar de toda a sua autoridade, não conseguiu evitar a ruptura da Igreja Ocidental com a Igreja Oriental.

 

Em Constantinopla, o imperador havia expulsado da Sé patriarcal o bispo Inácio, por ser homem fanático, e havia colocado no seu lugar Fócio, nomeando-o patriarca apesar de ser um simples leigo.

 

Nicolau I escreveu ao imperador Miguel III que convocasse um concílio onde Inácio pudesse ser julgado; e acrescentava, numa segunda carta: "Mas, em primeiro lugar, a fim de levantar os principais obstáculos que separam as igrejas grega e latina, pedimo-vos o restabelecimento da jurisdição da nossa Sé romana sobre os domínios do império e a restituição dos "patrimônios de São Pedro" na Calábria e na Sicília bem como o direito de nomear prelados nas dioceses de Siracusa". Um olho no poder eclesiástico e outro no poder político...

 

Mas Fócio foi re-confirmado pelo imperador grego. Fócio escreveu uma carta a Nicolau I em que refuta e condena todos os dogmas romanos da supremacia do bispo de Roma e mostra por que motivo Roma não pode ser aceita como centro de poder eclesiástico pelas igrejas do Oriente.

 

Refuta também e condena o celibato dos padres, defendido por Roma, por ser origem de muitas imoralidades.

 

Nicolau I respondeu que "em virtude da autoridade que recebera de São Pedro" reprovava tudo aquilo que havia sido feito em Constantinopla. Então a igreja grega resolveu excomungar a Igreja de Roma e separar-se definitivamente dela.

 

Mas as falsas "Decretais" do pseudo-Isidoro tornaram Nicolau I um homem exaltado. Veja o leitor essa carta que ele enviou aos bispos de Lorena:

"Afirmais obedecer ao vosso soberano em obediência às palavras de São Pedro que escreveu: Sê sujeito ao príncipe porque está acima da todos os mortais; mas esqueceis que nós, bispos de Roma, temos o direito de julgar todos os homens porque somos vigário de Cristo; por isso, antes de obedecerdes aos reis, deveis obedecer a nós; e se nós declaramos culpado um rei, vós deveis repeli-lo da nossa comunhão até o dia em que nós o perdoarmos".

 

"Só nós, bispos de Roma, temos o direito de ligar e desligar, de condenar ou absolver Nero; mas os cristãos não podem sob pena de excomunhão, obedecer senão a nós, pois mais ninguém é infalível".

 

"Os povos não são juízes de seus príncipes; devem obedecer, sem reclamar, mesmo as ordens mais duras e curvar a fronte aos castigos que lhes aprouver infligir-lhes, porque um soberano pode violar as leis fundamentais do país e apoderar-se dos bens dos cidadãos, quer por impostos, quer por confiscos; pode mesmo dispor-lhes das vidas sem que um só de seus súditos tenha o direito de lhe dirigir a menor observação.

 

"Mas se nós, bispos de Roma, declararmos um rei como sendo herético e sacrílego, se o expulsarmos da Igreja, os clérigos e os seculares, qualquer que seja a sua posição, ficarão desligados do seu juramento de fidelidade e deverão revoltar-se contra o poder do rei". (M. La-chatre: "História dos Papas; etc"; vol. II; pág. 15; I Col.).

 

A loucura da ideologia do poder tomou conta de Nicolau I, o Grande!

 

Nesta carta encontramos pe¬la primeira vez na história pontifícia, a declaração de: "vigário de Cristo" e "infalível", bem como o conceito de jurisdição sobre as autoridades civis.

 

Mas é bom saber que fazia séculos que a ideologia do poder eclesiástico estava estruturando-se... E temos muitas outras cartas de Nicolau I parecida com essa! Vou citar somente aquela que Nicolau I escreveu a Bogoris, rei dos búlgaros, quando ele se converteu à fé cristã:

 

"Dizeis em vossas cartas que fizestes batizar, contra a vontade deles, os vossos súditos e que vos expusestes a uma revolta tão violenta que a vossa vida correu perigo. Glorifico-vos por terdes mantido a vossa autoridade imolando ovelhas desgarradas que não queriam entrar no rebanho.

 

"Não só não foi pecado este santo rigor, mas até foi meritório, porque abriu o reino dos céus aos povos sujeitos ao vosso domínio. Um rei não deve hesitar em ordenar matanças quando elas podem manter os seus súditos na obediência ou sujeitá-los à lei de Cristo; e Deus, por essas mortes, vos recompensará neste mundo e na vida eterna".

 

Algum leitor quer mais?

 

Houve um e outro bispo ocidental que tentou rebelar-se... Mas o problema era que os bispos de Roma já eram considerados senhores do Céu e da Terra. A Sé de Roma já era de fato, senão de direito, um grande Estado e os bispos ocidentais eram apenas donos (quando o eram) de um pequeno palácio...

 

E no fim de tudo a Igreja romana venera Nicolau I como um grande santo: São Nicolau I.

 

Autor: Carlo Bússola, professor aposentado de Filosofia da UFES

Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.