Não Existe Primado Nos Primeiros Séculos

No começo do cristianismo, toda a autoridade eclesial repousava nos sínodos patriarcais

 

 

 

O título acima significa que nos primeiros séculos do cristianismo não existia poder especial eclesiástico romano, isto é, do bispo de Roma. Toda ideologia do poder eclesial romano se fundamenta no Primado; ora, se for provado que o Primado não existia nos primeiros séculos, a ideologia deste poder fica invalidada por ficar claro que não passa de uma invenção tardia.

 

Ora, os racionalislas e os teólogos liberais nos informam que a igreja cristã já no II século era composta de bispos, presbíteros e simples leigos; eram essas três classes que tinham todo o poder eclesial, e não o bispo de Roma.

 

Eis as provas desta tese:

 

Eusébio nos informa (III; II) que com a morte de Tiago, primeiro bispo de Jerusalém, "os sucessores de Jesus, os apóstolos, os discípulos e os parentes ainda vivos de Jesus reuniram-se para dar-lhe um sucessor e de comum acordo elegeram Simeão" (Simeão, é Simão-Pedro).

 

E Clemente, bispo de Roma, na epístola aos Coríntios, no fim do I século, nos diz que este costume ainda perdurava.

 

Até o concilio de Nicéia, em 325, parece ser este um costume ininterrupto. O IV concilio de Cartago (fim do IV e começo do V século) proibia os bispos de ordenar outros bispos e presbíteros sem o consentimento do clero e a aprovação dos leigos (cânon 22).

 

Este costume será incluído pelo bispo de Roma, Leão I (440 - 461) nas "Constituições Apostólicas" porque, dizia ele, "quem deve mandar em todos, deve ser eleito por todos". E Hormisda, bispo de Roma em 520, aceita a aclamação do povo como sendo "Juízo de Deus".

 

Este costume vigorou até a Idade Média, quando os bispos da França eram nomeados pelo povo, pelos clérigos e monges, sem nenhuma consulta ao bispo de Roma, que freqüentemente aceitara as decisões que não lhe agradavam, como, por exemplo, em meados do III século quando houve o conflito entre os dois rivais Cornélio e Novaciano, ambos bispos de Roma, ao mesmo tempo.

 

No ano de 253, dois espanhóis, o bispo de Mérida e o bispo de León, foram depostos pelo sínodo provincial por terem traído a fé durante a perseguição de Gallo. Os dois recorreram ao bispo de Roma, Estêvão, que se reintegrou na sua sé. Mas um outro sínodo, reunido por Cipriano, bispo de Cartago, anulou a decisão dê Estevão e confirmou o sínodo espanhol.

 

Anos mais tarde foi novamente Cipriano que advertiu o bispo de

De Roma contra o bispo de Arles, que favorecia a heresia de Novaciano. A carta de Cipriano é uma afirmação positiva da igualdade jurisdicional existente entre os metropolitas, e de competência exclusiva dos sínodos locais para destituir os bispos prevaricadores.   

 

Diniz, bispo de Alexandria (Egito), exercia sua autoridade moral sobre as igrejas da Espanha, resolvendo questões de disciplina e de moral e suas decisões eram aceitas pelos sínodos.

 

Quem nos informa disso é o historiador Fleury ("Hist. Ecles."; VII cap. 56). Thomassino, o famoso canonista do século XVII, escreve que até o ano de 500 todos os bispos, inclusive o de Roma, eram eleitos democraticamente segundo a tradição.

 

Foi a partir do século VI que, logo após a sua eleição, na forma da tradição, os patriarcas costumavam avisar o bispo de Roma como ato de cortesia, pois jamais pensavam receber confirmação do fato (Tomo II; p. II; liber II; C. VIII; a. XI).

Por muitos séculos os bispos de Roma limitavam-se à administração de sua diocese, sem tomar conhecimento, ou, mesmo tomando conhecimento, sem interferir na disciplina geral das igrejas e muito menos nos artigos de fé.

 

Veja aqui, por exemplo, toda uma série de heresias que nos primeiros séculos foram julgadas, ou condenadas por concílios formados de bispos que não eram da Igreja de Roma:

 

1- Os Ebionitas com sua teologia dualista.

2 - Os gnósticos de Simão Mago.

3 - Os milagres de Apolônio de Thiana.

4 - Saturnino com a sua teologia da criação.

5 - Basílide de Alexandria que negava a redenção.

6 - Carpocrates que negava a divindade de Jesus.

7 - Valentinianos com suas teorias gnósticas.

8. - Marcião que negava ser Jesus o filho de Deus.

9 - E outras heresias menores.

 

Ora, quem denunciava estas heresias e as condenava eram bispos orientais ou africanos: Ignátio de Antioquia; Policarpo de Esmirna; Justino de Samaria; e Ireneu de Lyon (o único do Ocidente). O bispo de Roma nem sequer era nomeado, quanto menos consultado!

 

E mesmo quando o bispo romano Victor (193-202) pediu que todos o aceitassem como juiz supremo, por ser bispo da capital do império, ninguém o escutou, aliás o bispo de Efeso repeliu de

forma áspera seu pedido lembrando-lhe o dever de respeitar a independência das igrejas.

 

Do mesmo modo, quando na metade do III século surgiu o debate sobre aqueles que foram apóstatas na perseguição de Décio, isto é: se poderiam ser novamente recebidos no seio da Igreja, ou não, foi o bispo de Cartago, Cipriano, que resolveu a questão, num sínodo cujos decretos foram aceitos por todas as igrejas.

 

E quando pouco mais tarde surgiu a controvérsia sobre o batismo dos heréticos, foi novamente o bispo de Cartago que resolveu o problema contra as decisões do bispo de Roma, Estêvão (253-257). Até Sto. Agostinho deu razão ao bispo de Cartago (" De Bapt.; II; c. XV).

 

Quando era bispo de Roma Felix I (269-274), surgiu a heresia de Paulo de Samosata. Então os bispos da região se reuniram em Antioquia sob a presidência do bispo local e condenaram e depuseram Paulo de Samosata, sem que o bispo de Roma fosse informado.

 

O mesmo aconteceu com o cisma donatista que negava os sacramentos aos apóstatas arrependidos, exigindo que fossem batizados de novo: o bispo de Roma nem sequer teve parte porque quem presidiu o concílio foi o imperador Constantino e, em Arles, foi o bispo da cidade como representante do imperador.

 

E o que aconteceu no Concílio de Nicéia em 325? Quem o convocou e quem o presidiu foi o imperador Constantino, e não o bispo de Roma. Aliás, sabemos que quando o imperador não estava presente, quem presidia o concílio era Osias, bispo de Córdova, na qualidade de deputado imperial que, por sinal, era o emissário imperial em quase todos os concílios de então.

 

Ora, as decisões conciliares de Nicéia eram logo transmitidas por comunicação especial, somente à Igreja de Alexandria e não à Igreja de Roma...

 

Era bispo de Roma Silvestre, que reuniu os bispos europeus, ausentes do concilio, para assinarem as conclusões de Nicéia. É bom lembrar aqui que o concilio de Nicéia concedeu ao bispo de Alexandria e seus sucessores, os mesmos privilégios que tinha o bispo de Roma e de Antioquia.

 

Pouco antes do ano 340, bem na metade do século IV, Eusébio, bispo de Cesaréia, escrevia: "Maioris momenti controvérsia aliter quam per synodos camponi: non possunt" ["Vita const. Imp."; I; LI) que significa: as controvérsias religiosas de maior importância somente podem ser resolvidas por meio de sínodos: ficando subentendido: e não apelando ao bispo de Roma ou a outro bispo qualquer.

 

Mas o bispo de Roma Júlio I (337-352), pensando (e querendo) ser uma espécie de centro do cristianismo por estar na capital do império, lançou a idéia que só ele tinha direito de julgar os assuntos importantes. Foi mexer num ninho de marimbondos!

 

Os bispos de Antioquia, de Ni¬céia, de Calcedônia, de Flacilla e outras, advertiram-no de que "por ser bispo de uma cidade maior, não era superior em dignidade aos demais bispos; e era de se espantar que um bispo estranho fosse intrometer-se num debate que não lhe dizia respeito; com efeito, um bispo deposto por um sínodo de bispos de uma província não podia ser reintegrado por outros bispos, muito menos pelo bispo de Roma''! (mais notícias, em: L. Maimbourg: "História do Arianismo"; L.I).

 

Estava fixada aqui a ruptura entre o cristianismo oriental, baseado na tradição eclesial, e o cristianismo ocidental com seus prolegômenos da ideologia do poder eclesial.

 

Nunca esqueçamos isto, se quisermos entender as atuais relações entre católicos romanos e católicos ortodoxos.

 

Sto. Agostinho, enquanto bispo de Ipona, convocou sete concílios sem pedir permissão ao bispo de Roma. Num desses concílios se afirma que só o concilio provincial é o juiz supremo dos bispos provinciais.

 

Um outro concilio confere exclusivamente ao bispo de Cartago o poder de instituir novas dioceses. Um outro proíbe aos bispos que se comuniquem com os bispos de além-mar (leia-se: Roma) sem prévía permissão dos bispos provinciais.

 

A lista de sínodos e concílios realizados antes do século VI é ainda muito extensa.

O que neles aparece é o seguinte: o bispo de Roma quase nunca era informado e quando era informado, por um ato de cortesia,  não se lhe dava nenhum poder maior do que aos demais bispos  de outras províncias.

 

Era totalmente desconhecida a tal de jurisdição universal do bispo de Roma sobre os bispos da cristandade. (Veja-se o recente trabalho; de pesquisa histórico-teológica realizado por Heinz-Jurgen Vogelsir "Priester dürfen heiralen"; Bonnfl 1992 e outro: "Noi siano la chiesa"; Clandiauna; Torino; 1996). Is-;' to é terminantemente provado pela história do cristianismo.

 

Aliás, nestes primeiros séculos, nenhum bispo de Roma disse claramente ser ele o sucessor do apóstolo Pedro e, muito menos, que Pedro morreu, bispo, em Roma.

 

Aquilo que lemos na enciclopédia Mirador é uma falsidade histórica.

 

Chegamos assim ao grande Gregório Magno, que foi bispo de Roma de 590 a 604. Foi ele que numa carta a Ciríaco, patriarca de Constantinopla escreveu: "Sem a menor hesitação te digo que se alguém quiser chamar-se bispo universal, ou se alguém cobiçar este título, é, por causa deste seu orgulho, o precursor do anticristo porque pretende levantar-se acima dos outros" (Epístola: 33; e VII. Confira também: J. Devoti; "Inst. Canon."; Ed. Paris; L. I; T. III; sect. I; § XII; pág. 145).

 

Por que Gregório Magno escreveu isto? Certamente porque estava nascendo a ideologia do poder eclesiástico dos bispos de Roma, que para ele era um absurdo.

 

 

 

Continua na próxima postagem desta seção...

 

 

Autor: Carlo Bússola, professor de Filosofia na UFES

 

Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.

 

 

Observação: Mantida a formatação original em todos os artigos, apenas os destaques visuais são por conta deste site.

 

 

Nota do IASD Em Foco

 

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